A burocracia, a desonestidade e a vigilância

Murillo Leal
4 min readAug 12, 2022

É simples. Em um mundo — utopicamente — honesto, nenhum cartório seria tão milionário, nenhum mercado teria câmeras e pouca terapia seria necessária.

Parece uma bobagem, mas se, num mundo utópico, se todas as pessoas fossem realmente honestas com as coisas, ninguém precisaria de um registro de nascimento, bastava dizer que é do interior da Bahia, ninguém iria precisar de um documento comprovando que a Mariazinha casou com o Pedrinho, restava-lhes apenas serem felizes para sempre ou não, se a fofoca que o Seu Paulo havia tido um mal-súbito e ido para o beleléu se espalhasse ninguém precisava checar, nunca ia solicitar um atestado de óbito.

Teve até um tempo que bastava a palavra empenhada, mas este mundo também já não é mais possível, por isso os pais fazem exigências de protocolos aos seus filhos, os chefes fazem funcionários bater ponto, os amigos enviam comprovantes de pix do racha da conta no bar, as instituições de ensino se obrigam a dar certificados mesmo não comprovando de fato qualquer conhecimento presente do tema no cérebro dos alunos, e por último, o pujante e atual debate sobre ter ou não ter comprovante físico de votação para atestar que as urnas não foram fraudadas em plena democracia, narrativas e polarização.

É da falta de brio público e privado, da descrença da lisura natural, da cisma de transparência que o fio de bigode é reduzido a alguns sulfites A4 grampeados no arquivo de um sótão cheirando mofo ou nas gavetas dos escritórios. Na hipótese mais sustentável, a garantia da verdade professada se torna um monte de megabytes socados em pastas virtuais em algum servidor em algum país europeu do mundo. A confiabilidade está em todo lugar, mas em nenhum também em simultâneo.

Talvez você tenha percebido como é fácil apresentar essa ideia que coloquei no título do texto apenas ilustrando no mundo físico das averbações, comprovantes, anotações oficiais e das certidões. Ainda mais no país mais “burocraciável” do mundo no que diz respeito a comprovar fé pública.

No entanto, a coisa não é só na esfera administrativa pública como muitos imaginam, na privacidade da vida comum a coisa também surge. Repare bem em como nos relacionamos com as pessoas no cotidiano. A gente vive indicando as pessoas em qual guichê dos das nossas preferências nosso coração está atendo, distribuindo senhas para conversar, agendando compromisso e carimbando avaliações. Tudo para burocratizar a nossa vida relacionam.

Quem nunca ouviu uma história de um amor burocrático? Estou falando do amor que mal começou e vive criando garantias de certidões de legitimidade de sentimentos, que despeja toda a papelada do contrato preferencial com rubricas duplas em cada página dessa história de amor que acabara de começar.

Por outras vezes, sem direito a ampla defesa, o oficial de justiça dos relacionamentos bate a nossa porta e descobrimos que alguém nos acionou judicialmente no tribunal do amor, do apego, da responsabilidade afetiva, dos bons modos para dar explicações sobre certas atitudes que causaram desconfianças.

Muita discussão de relação se torna basicamente apresentações de partes opostas com anexos, provas, testemunhas, contraprovas e até veredito midiático público. A coisa de se relacionar é cada vez mais como um grande plenário com votação aberta. E lá vamos nós, recolher todo o material que temos acumulado para comprovar a nossa inocência ou a nossa falta de dolo que seja.

Não adianta, caro leitor, o mundo é feito de gente burocrata sentado em uma pilha enorme de documentos mofados, movimentando uma máquina de vigilância que corresponde a todos os seus impulsos de incertezas, que levantam suspeitas a tudo e todos, que mora na incredulidade, no ceticismo generalizado, na dúvida constante e no receio de quem qualquer coisa a qualquer momento dará merda.

Acredito. Todo esse cenário não é culpa apenas da cultura dos burocratas, exclusivamente, a gente também é digno de descredito. Toda burocracia é demorada porque quer certificar que diante dela não está uma fraude, o problema é que a vigilância ao desonesto não garante nada.

A desonestidade gerou a vigilância, que concebeu a burocracia e parece que esta última tem uma filha bastarda chamada ignorância. Uma família atrapalhada, mas unida.

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Murillo Leal

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