Crônicas de home-office | #01
Sentada na banqueta da cozinha, ouvia o despejar vagaroso da dose diária de ânimo em forma de café terminar de encher a xícara. Bocejava de um em um minuto seguido de um “aaaai, ai”
O barulho da máquina de grãos foi interrompido por outro. Parecia o som de uma notificação de vídeo-chamada, que repentinamente vinha lá do computador do “escritório”, totalmente improvisado no meio da sala.
Correu até lá abandonando a xícara pra trás, bateu o olho na tela e viu uma mensagem enviada há 6 minutos:
“Marina, podemos trocar uma palavrinha rápida?”
Resmungou sozinha pela casa como se alguém fosse ouvir:
— Caralho, será que o Doutor Julio não tem vida fora da empresa? Será que ele não tem medo de acordar as crianças dele antes das 8 horas? Ele acorda que hora? Que cara maluco.”
O espelho bem na frente de si, denunciava as olheiras profundas de uma noite meia-boca, o pijama largo de estrelinhas com astronautas e a notável falta matinal de sutiãs. Agradeceu que o hálito ainda não era sentido por vídeo.
Pegou o terninho coringa que ficava estrategicamente no encosto da cadeira, colocou os óculos chamativos no rosto e certificou-se que a câmera estava alta suficiente para ninguém ver o corpo.
— Bom dia, chefinho.
Tentou disfarçar o humor com uma pequena intimidade forçada.
— Mariana, tudo bom? Seguinte, não recebi…
Sem pensar, retrucou no mais rápido segundo que teve oportunidade:
— Marina, seu Julio! É Marina.
O senhor deu uma pausa curta e como um caminhão no embalo de uma estrada asfaltada, continuou inabalável:
— Tanto faz… viu, não recebi os relatórios das indústrias que prospectamos este mês que te pedi ontem. Aconteceu alguma coisa?
Perguntou com a sobrancelha incisiva e o olhar por cima dos óculos.
— Olha, seu Julio, é que o Pedro Henrique, meu caçula, teve uma febre e não conseguir compilar só, mas os dados estão aqui no meu computador.
— Os dados no seu computador não serve de nada para mim, Marian… Marina.
Ela respondeu desconsiderando o fato claro de que ele não fazia ideia de quem era ela ou da importância do seu trabalho por ali.
— Certo, envio pro senhor assim que desligar aqui.
— OK, menina. E melhora essa cara aí, se você aparecer com esse desanimo para os clientes vão pensar que não estamos cuidando dos nossos funcionários.
Sorriu educadamente, lambeu a boca para molhar as palavras e soltou:
— O senhor tem razão. Mesmo tendo a certeza absoluta que não.
— E outra coisa, minha filha… Vou te falar uma coisa. Melhor, um dica de amigo.
Tinha medo de ouvir, mas não tinha absolutamente nenhum outra alternativa, ele continuou:
— Este momento é delicado pra todos, essa pandemia pegou todo mundo de surpresa e temos que nos adaptar, mas não podemos deixar com que as questões pessoais interfiram nas profissionais. É a hora de mostrar que estamos juntos e comprometidos para o bem de todos, certo?
— Entendo. Eu só queria ser uma boa mãe. Obrigado. De qualquer forma, até as 11 está no seu e-mail o tal relatório.
— Claro, família em primeiro lugar. Mandei os meus para uma casinha que compramos aqui no interior no fim do ano. Temos que proteger as pessoas que amamos.
— É…
— Obrigado, Marina. Agora acertei, hein? Hahaha. Abraço.
— Até mais, doutor.
Quis chorar, mas era cedo demais. Jogou o café que já estava frio na pia, dobrou a quantidade da dose no visor e deu play torcendo para que o Pedro acordasse bem mais tarde que o normal e bem melhor da febre que no dia anterior.
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