O dia em que aprendi que eu era racista
Ainda quando morava em São Paulo um grupo de amigos foram nos visitar no apartamento. Tínhamos o hábito de sentar em frente ao outro na mesa, comer qualquer bobagem nada saudável, beber até esvaziar a geladeira e conversar sobre todo e qualquer assunto que viesse à tona.
Já era madrugada quando as garrafas de cerveja iam se empilhando na pequena mesa de madeira e na pia da cozinha. As palavras elásticas e carregadas pelo inicio da embriaguez iam distribuindo-se pelo ar numa conversa tipicamente fraternal. É mais que sabido que a bebida sempre dá uma coragem danada de ser a gente mesmo.
Falávamos sobre relacionamentos e antigas experiências e cada um ia contando suas experiências em uma espécie de série cômica com aquela cara de deboche típica de roda de amigos. Todos pareciam se divertir muito.
Num pulo de coragem, usando um tom mais natural possível, uma das nossas colegas — de pele preta e traços afro — terminou o último gole da sua cerveja e levantou a pergunta crucial: vocês, meninos, já se envolveram com quantas meninas negras?
A pergunta nos deu flagrante imediato. Um soco na fuça da alma sem possibilidade de esquivo. Pensei em dar uma resposta isentona, mas ser desonesto com ela, era realmente admitir a sua tese vindoura.
Quando tínhamos formulado uma respostas satisfatória como uma grande desculpa para justificar o injustificável, ela deflagrou ironicamente outra questão, encorajada pela cerveja que acabara de abrir: quantos negros tinham na sua turma de faculdade?
Sem ter como responder, passei para o silêncio sepulcral. Um dos amigos, pediu para ela explicar a razão das perguntas. Ela prontamente resolveu dizer:
“Ah, sabe, não me considero uma ativista. Vocês sabem que não costumo ficar com essa papo, mas outro dia, aconteceu uma coisa comigo que acho que nunca aconteceu com vocês. Estava na balada e um cara chegou em mim. Quando começamos a conversar, percebi que ele estava interessado na minha amiga branca, e que, eu era apenas um canal de acesso até ela. Outro dia, um outro cara disse que “mulher negra é gostosa demais, mas que não podia apresentar-me para a família dele”. Teve a vez que um professor disse em sala de aula na faculdade, que só eu sabia o que ver a dificuldade econômica como se for negro é sinônimo de pobreza. O meu chefe deixou de me promover porque “os clientes” eram racistas e iam me olhar com cautela. O uber, outro dia, elogiou o prédio que moro como se desconfiasse que eu pudesse pagar por ele. Aí, me dei conta que sou diferente.
Senti como se ela estivesse nos contando uma daquelas ficções de novelas de época, mas aquele era um episódio sobre a própria vida dela. Imediatamente, comecei a pensar sobre aquilo.
Eu estou numa idade que tenho tido resistência a debates ideológicos longos. Não tenho mais saco para ativismos radicais de qualquer espécie e nem tampouco para lidar com exageros de todo grupo extremo, mas passei a ouvir mais sobre o tema.
No entanto, ali naquela situação, não era uma militante arrotando frases prontas, não era uma pessoa sendo agressivamente retórica, me cobrando por algo que não tenho culpa, não era alguém tentando ter razão a todo custo, não havia qualquer arrogância acadêmica, sociológica, filosófica, não havia sequer gritos e histerias, era simplesmente uma amiga contando uma realidade da sua vida.
Perguntei como ela se sentia em relação a isso tudo e como, nós, podemos ajudar nessa questão.
Ela teve que nos explicar o óbvio. Disse que a população negra do país está majoritariamente em áreas de risco de violência, que tem pouco acesso a educação formal e que existe uma concentração de pobreza enorme, que falta oportunidades reais em meio a grupos étnicos negros, e que devido a isso, a morte entre negros por meio da violência é realmente mais comum do que imaginamos.
Um outro amigo mais politizado insistiu que os grupos radicais fazem um desserviço para a grande causa quando extrapolam e tornam inviáveis os debates públicos e a conscientização mais abrangente. Contou duas histórias sobre sujeitos radicais.
Ela concordou, mas teve que explicar, que esta é uma reação de anos de desprezo, de descaso com sentimentos acumulados e que o radicalismo formou-se justamente nos ambientes em que o estopim já é constatável: “Que outra alternativa tem o jovem que vê isso todo dia?”
Esta semana, tomei coragem para assistir o tal vídeo do policial que assassinou George Floyd nos Estados Unidos usando de força desproporcional e lembrei do olhar assustado da minha amiga dizendo que: Às vezes, aceitar tudo isso é muito difícil, mas já é normal entre a população.
Eu vejo uma onda de mensagens de pessoas públicas que querem apenas surfar na hype do momento, fazendo um marketing pessoal barato com coisa séria e deixando de expor o tema com a seriedade necessária, mas também tenho notado que o horror dos acontecimentos emplaca na nossa mente uma expansão da consciência, fazendo com que muita gente como eu pense sobre si, sobre suas atitudes e como, mesmo sem querer, acaba propagando comportamentos que ferem direitos e a liberdade de outros.
A hora que ela despediu-se de mim na porta, eu a abracei e cochichei no seu ouvido: “Não espere sentir-se mal para ter coragem. Você me ensinou que meu racismo é sutil e perigoso, mas que é possível contorná-lo nas pequenas coisas, C. Obrigado pela sua coragem.”
Ainda deu tempo dela provocar a gente: Vou compartilhar a localização do Uber com vocês no grupo, tá?
#BlackLivesMatter
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