Pressa de sei lá o quê

Murillo Leal
4 min readSep 10, 2021

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Já tem uns dias que penso na minha avó. Ela é uma personagem icônica das minhas histórias. Acho que herdei dela essa capacidade de provocar reações diversas apenas por ser o profeta do óbvio.

Ela era uma frasista inacreditável. Mesmo sem nem ter terminado a quarta-serie, era dona de um arsenal de ditos que guardo até hoje. Não fez curso de nada, não tinha formação acadêmica, nunca pisou em uma universidade. Não lembro de vê-la anotando nada em caderno. Ela era terapêutica, muito precisa e bem-humorada nas frases ditas com um amor que nunca conheci.

No fundo da casa dela – como uma boa casa de vó – havia uma variedade enorme de plantas, verduras e terra. Entre elas, havia o mais querido entre os netos, o pé de cana-de-açúcar.

Era ali naquele quintal terroso, com uma modesta tira de cimento cinza que ela gastava toda sua inesgotável paciência com a gente. Quase toda semana, uma ou duas tardes que fosse, ela passava ali sentada numa cadeira de varanda, com uma bacia branca no colo, descascando a cana-de-açúcar em pedaços proporcionais ao que cabia na nossa boca de criança.

Era a nossa sobremesa. Me lembro inclusive de um dia que a vizinha levou um pudim holandês daqueles de padaria para nos alegrar, mas a gente desdenhou com respeito de todo aquele leite condensado para focar nas lascas de cana com a vovó. Era um ritual.

Naquele tempo, eu achava que o motivo de passar todas aquelas horas ali era por causa do doce em si, mas hoje, quando revisito esta memória, eu sei que não era isso. Eu gostava de ver ela descascar e usar seu tempo em uma coisa banal. Como assistir uma cerimônia de Oscar.

Ela esperava a gente pedir pelo momento. Nunca se ofereceu de antemão, mas não era porque não queria, esperava o desejo sair em nós. Ela sabia esperar.

Colocava o tênis velho com o calcanhar rachado de fora do sapato, ia até as tiras, escolhia um caule robusto, fibroso, articulado com uma metodologia desconhecida e descia a faca afiada bem perto da base. Como um samurai. Pouca força, muita precisão. Era um golpe articulado.

Puxava aquele bastão de açúcar pra lá e pra cá e destilava uma segunda facada mais delicada. Vinha pelo resto de todo aquele verde com aquele pedaço considerável nos ombros. Seguia o caminho entre a terra feito de pedaços de lajotas como quem tinha caçado um animal perigoso.

Sentava-se na cadeira de área. Nos alertava sobre a distância segura e desfiava as partes laterais primeiro com a faca. Era como se despir antes de um banho.

Em seguida, vinha cortando o caule entre as fibras, com a maior destreza, paciência e calma do mundo. Só havia uma regra: Não podia começar a comer antes que tudo estivesse cortado. Minha vó temia que um neto comesse mais que o outro se a coisa não fosse organizada.

A gente passava um tempo bom ali assistindo ela despenar aquele tronco fino e grande de puro açúcar. Aquilo não era só uma cana. Era parte de quem minha avó era. Toda aquela tranquilidade e serenidade de quem sabia o que estava fazendo. Ela tinha um equilíbrio entre a agressividade necessária e a delicadeza possível que transbordava a mansidão. O que parecia ser uma pacata senhora agradando os netos era também uma aula de sossego.

Eu sempre me perguntava a razão pela qual ela simplesmente não comprava uma máquina que a poupasse daquele trabalho ou até mesmo nos colocava para ajudar a economizar seu tempo. Mas, hoje eu sei a resposta: ela não tinha medo de gastar tempo com o que amava.

Toda vez que alguém sugeria que tinha uma quantidade boa de pedaços dentro do pote e que podíamos começar a comer, ela retrucava: “Ara, pra que essa pressa?”. Ela não se sentia lenta, não estava competindo, não tinha medo de ser a legítima baiana que era.

No fundo, escondia naquela falta de pressa uma atenção carinhosa, uma intenção afetiva e a calma necessária para amar. Ela não tinha a ânsia de fazer aquele momento acabar. Ás vezes, cantarolava um hino da igreja enquanto machadava o pedaço.

Devagar, o balde ia se enchendo e a nossa expectativa se esvaziando. Ela entendia que o resultado daquilo era só o consequência do momento. Ela não tinha obrigação de metas, nem nada que balizava seu desempenho. Ela estava apenas ostentando o tempo com algo que amava fazer.

Outro dia, me dei conta que estava atrasado para uma reunião online. Um apito no celular me acordou. No desespero de não deixar as pessoas esperando, derrubei o computador no chão tentando conectar a câmera. Eu vi um pedaço da tela rachado, mas ele ainda estava funcionando bem.

Respirei fundo. Liguei a câmera, entrei no link às pressas e descobri que a reunião tinha sido cancelada. Me avisaram, mas eu não vi a mensagem porque estava ocupado demais com meu atraso. Quis ser mais rápido do que precisava.

Naquela hora, escutei a Dona Maria me dizer: “pra que essa pressa? Pra onde vai assim, menino? Tá indo para onde com essa afobação?”

Não é que apressado come cru, apressado, hoje em dia, acaba nem comendo. Talvez eu precise plantar um pé de cana aqui no canteiro da avenida. Talvez eu tenha que aprender a cantarolar mais. Talvez eu deva lembrar daquela senhora negra que não tinha pressa de viver tudo o mais rápido possível.

O “andar devagar e sempre” talvez seja o grande segredo daquela mulher. Pra que essa pressa?

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Written by Murillo Leal

#Jornalista e #escritor • TOP VOICE #linkedin 390 mil seguidores • Especialista em #storytelling • Colunista @rockcontent | murilloleal.com.br

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