Uma crônica rodriguiana para um fato rodriguiano

Murillo Leal
2 min readJan 23, 2024

Nada é mais carioca que o absurdo. No coração do Rio, onde a vida e a morte encontram morada, um crime de poesia macabra foi perpetrado. Não se trata de mais uma delinquência qualquer; trata-se do furto, nada menos, do busto de Nelson Rodrigues, o profeta que por muitas vezes escreveu sobre as almas devassas que o fizeram vítima nesse dia.

Imaginem, se puderem, a cena grotesca: malfeitores — não, artistas do absurdo — subtraindo do mármore frio a efígie de bronze do nosso maior dramaturgo, Nelson, O Rodrigues. Se suas crônicas ainda borbulhassem entre os vivos, que sublime tragicomédia não escreveria ele sobre o próprio infortúnio póstumo?

Entre sexta e sábado, no silêncio cúmplice das lápides, a estatueta, pesando seus quilos de história, desvaneceu-se. “Peso morto,” dirão os insensíveis. Mas não para nós, órfãos das frases pontiagudas e ferozes do mestre. A cidade perde um fragmento de sua alma; e eu acrescento: o bronze pode ser roubado, mas a ironia do episódio abraça ainda mais a genialidade de Nelson, que é indestrutível, eterna e até antecipada em denunciar o caráter brasileiro.

Pernambucano de nascença, carioca de paixão, Nelson fez do Rio sua arena, e de cada rua, cada esquina, um palco para suas tragédias e farsas. Morto em 1980, mas imortal nas páginas que nos deixou, é de se esperar que o escritor, lá do alto de sua cátedra celestial, contemple o desvario terreno com um sorriso sardônico: “Tá vendo? Deus não me deixava mentir. No máximo, algum exagero ou outro”.

O busto, talhado para eternizar o artista em frente à sua máquina de escrever, agora é um fantasma de bronze à solta. Enquanto prometem vigilância, a Polícia Militar reforça seu policiamento, numa tragicomédia de erros e omissões que brindam as acusações de Nelson sobre o Brasil, melhor, sobre o brasileiro.

Ah, se as estátuas falassem, ou melhor, gritassem, quantas histórias Nelson não contaria sobre esse assalto que a noite esconde! Mas deixemos de lamúrias, meus caros. O busto foi levado, sim, mas o legado de Nelson Rodrigues — o olhar agudo, a pena incisiva, a voz que não se cala — permanece, indelevelmente, gravado na cultura deste país contraditório. Nelson vive, e vive com vigor.

Nelson, com sua sabedoria de feiticeiro das palavras, já nos ensinou: há roubos que, por mais execráveis, acabam por nos roubar nada mais que a ilusão de posse. E assim, entre o absurdo e o sublime rodriguiano, a crônica de hoje se encerra, não sem antes sussurrar um segredo que Nelson, certamente, aprovaria: na arte, como na vida, o verdadeiro crime seria o esquecimento. E contra esse, felizmente, nem o mais hábil dos ladrões pode verdadeiramente triunfar.

@lealmurillo | Jornalista | Top Voice Linkedin | Storytelling e Conteúdo

Quer aprender mais sobre Storytelling? Clique aqui.

--

--

Murillo Leal

#Jornalista e #escritor • TOP VOICE #linkedin 390 mil seguidores • Especialista em #storytelling • Colunista @rockcontent | murilloleal.com.br